Das paixões: prólogo da alma

Das paixões: prólogo da alma


Um sujeito deslumbrado com a própria vocação é um sujeito sem vocação e prisioneiro da própria paixão. Quem me dera. Por toda essa vida quis, ao menos acho, algo para querer, algo para me vincular, algo para sair de mim e me tornar aquilo de que seria o objeto da paixão. Queria eu poder tornar-me refém das paixões e, assim, justificar meu sofrimento com todo o embasamento que os heróis da ação se deslumbram. Mas, seria isso ação? Quer dizer, óbvio que há movimento, alguma deliberação primitiva e doação de si ao aceitar o embarque em um barco furado para navegar o Estiges. Mas, seria isso ação? Óbvio, digo eu, porque não é possível achar que pessoas de paixão agem irracionalmente. O certo seria pensar que, quem deslumbra-se plenamente consigo mesmo, dotado é de uma plena falta de si somada à burrice que somente a alma humana pode comportar.


Sempre quis querer. Acho que, no mais das vezes, faltava-me o acerto de contas com o destino para aceitar aquilo que queria. Com o passar do tempo, acho que, em verdade, a minha vontade era mesmo a de apenas querer o querer, já que não querer é uma benção não destinada aos humanos. Se, num mundo cujo equilíbrio dá-se pelas bordas arenosas da corrosão permanente, ainda as pessoas conseguem querer objetos que existem, esse mundo ainda é um mundo. Não?
Sei que não tenho paixões. Ou, talvez, falta-me aquela gratidão pelas paixões, típicas de quem consegue transformar a abstração do sofrimento existencial em um sofrimento prático, cabível, paupável, denotável e destrutível. Não me entandam mal, não tenho nada contra quem tem paixões. Eu mesmo gostaria de tê-las. Para mim, resta-se o sublime. Naquele sentido schopenhauriano, de ver o desmoronamento do mundo, mas de longe, em segurança. Meu caminho é mais estoico, mais racional, mais profundo.


Não.


Quer dizer, em parte. O que me cabe é o que me vem. Nesse caso, posso apenas aceitar que meu sofrimento não é pior quanto poderia ser, ou quanto já foi. A racionalidade de que tanto abuso, em verdade é permeada por emoções. Acho que todo meu esforço é tentar domar essas paixões. Bem que faço, afinal, paixões não realizáveis significa sofrimento. E aqui vou a outro ponto.
Se para pôr-se no mundo necessário é colocar-se a si mesmo em jogo, qual seria a temporalidade do magestoso devir da finitude? Qual seria a temporalidade do sofrer humano? Penso que não existe sofrimento que não advenha da expectativa. Simplesmente porque toda a significação que formamos ao compreender mundo parte do fato de estarmos projetados para o futuro. Não apenas projetados, mas jogados, arremessados, triturados em direção a um futuro ameaçador. O pior aspecto desse futuro é justamente o da esperança. Sim, não existe esperança sem sofrimento e, não existe sofrimento sem futuro. A maldilção humana é confundir projeção com querer, pois se estamos indo a algum lugar, nos é impelida a necessidade de querer ir ou não mas, ainda assim, a de querer. E as paixões?


Não sei, o que tenho eu a ver com elas? Você está me falando há um bom tempo que nada tem de paixões, confundindo vocação metafísica com simples bem viver e me pergunta das paixões!? Estou bem com as minhas e nesse sofrimento forçado que você diz não me vejo em lugar algum, afinal, orgulho-me daquilo que sou. Sou aquilo que acredito e naquilo que estou. As vitórias me enchem de uma alegria impiedosa, sempre na espera da próxima.


A perdição no real é o único modo de sobreviver ao jogo do mundo. Não entendo de metafísica, mas entendo do viver. É preciso fazer as pazes com o querer injustificado e aceitar que o brilho do ínfimo é mais contumaz do que o sagrado intangível. Me parece que o que você fala sobre paixão nada tem de paixão, mas de realização pessoal. Confundir isso é confundir o motor da alma com teorias inúteis que servem apenas para massacrar o ego quando se está sozinho. Toda paixão é inútil, porque em si mesma nada significa, mas ela leva a lugares. Não é possível que esteja se esquecendo disso?


Tens razão em um ponto, todas as paixões são inúteis. Elas levam sim a lugares. Mas, não estamos falando aqui de emoções que se esvaziam, mas de paixões, isto é, aquelas em que as pessoas se mantém presas – eventualmente por uma vida. Depois do que você falou, talvez eu já tenha outra posição sobre… de fato, não sei se gostaria mesmo de ter paixões nesse nível. Talvez a minha atração pelo nada salva-me de estar fadado apaixonadamente por algo inútil e não realizável, sendo que posso manter-me tranquilo sabendo que não realizarei nada, ainda que querendo um querer. No fim das contas, o mundo ainda é um mundo.

André Luiz Ramalho da Silveira

O tempo e a identidade – Carta resposta a ipseidade pura da melancia e seu texto Sobre o narrável e o possível

O tempo e a identidade – Carta resposta à ipseidade pura da melancia e seu texto Sobre o narrável e o possível

A pergunta central do antropoceno – essa nova era geológica que coloca o ser humano como o principal agente de mudanças biogeoquímicas no planeta, isto é, o principal vetor de catástrofes, muitas irreversíveis – pode não ser uma pergunta ética, embora ela seja fundamental. A pergunta central, penso, se dá na pergunta pela identidade. O que significa habitar um mundo cuja destruição é causada pela habitação daqueles que a habitam? E, por habitar, restrinjo aqui apenas nós, humanos, pois a natureza viva e não viva não habita, no sentido ainda a ser explicado aqui.

Se a pergunta central é sobre identidade, como correlativa do habitar, essa pergunta leva a outra igualmente importante, qual seja: como se dá a construção de mundo? A pergunta se insere de modo justificado uma vez que identidade pressupõe habitação no mundo e, mundo, pressupõe tempo. A imparcialidade é a ilusão fraca dos que buscam esquecer a si mesmos em face da cristalização de uma identidade prática arruinada pela burocracia. Neste sentido, não busco imparcialidade alguma. Tomo aqui como ponto de partida a visão ontológico-existencial de Martin Heidegger.
Perguntar por algo significa buscar pelo horizonte de sentido que torna aquela pergunta possível, por isso a pergunta é mais importante do que a resposta. Neste sentido a pergunta pela identidade se coloca central nestes tempos agônicos, afinal, o que significa ser alguém em tempos cuja indigência existencial não encontra parâmetros nem para o real, nem para o possível? O que garante a coerência para alguém dizer “sou eu”? Em tempos em que não apenas a implosão dos critérios de verdade aconteceu – isso já aconteceu décadas atrás com a suposta destruição do sujeito pelo brilhantismo pós-moderno –, mas sim a assunção da não verdade como pós-verdade se tornou a regra do possível, como pensar a existência enquanto algo significativo, condicionante e unificador da experiência humana? Ainda penso que, com Heidegger, temos uma boa resposta. O si mesmo existe sempre na possibilidade da ruptura. Essa possibilidade, dada pela compreensão da nossa própria finitude, torna possível a compreensão daquilo que é mais próprio para nós. Isso ocorre não em termos psíquicos ou materiais, mas em termos relacionais e existenciais, isto é, em termos daquilo que faz ou não sentido e daquilo que torna nossas possibilidades vazias em possibilidades que podem vir a caracterizar a nossa existência. Mas, o que nos mantém enquanto nós mesmos é a nossa permanência nessas possibilidades, ou a não permanência; de todo modo, não as possibilidades em si mesmas, afinal elas somente podem ser pensadas enquanto vinculadas a nós, de outro modo serão meramente devaneios lógicos – e vazios.

Claro, não falei uma parte importante. A compreensão que temos da finitude advém da relação que temos com a possibilidade de nossa morte. Essa possibilidade se espreita a cada pouco. No entanto, ela está mais presente e é mais sutil do que na maioria das vezes se compreende. A possibilidade da morte é a compreensão dos limites, a compreensão de que não há uma possibilidade que exista como fundamento para algo. Nesse caso, não há uma identidade que exista por si mesmo, nem uma identidade que, uma vez alcançada, se mantenha por si mesma. Por conseguinte, não há nenhuma identidade que seja dada divinamente, não há identidade que não seja história, e por isso mesmo toda identidade deve ser compreendida historicamente. Colocando exemplos, não há uma ideia de povo, de raça pura, de povo privilegiado, que resista à compreensão existencial de identidade, pois nestas ideias há o pressuposto de um dado a priori que antecede nossa projeção a essas possibilidades. Neste caso, do ponto de vista formal, projetar-se nessas possibilidades significa o mesmo que projetar-se em outras; no entanto, há de se arcar com as responsabilidades de se projetar em tal ou tal possibilidade.

Neste caso também podemos pensar o problema do habitar. Quem habita, habita um mundo. Não estou pensando aqui no significado específico que Heidegger utiliza para tratar do conceito de habitar, mas sim no sentido mais geral que pressupõe a noção de mundo. Neste caso, quem habita, habita em um mundo e, mundo, não significa nem a totalidade somada dos entes substanciais nem dos entes humanos, mas sim a unidade significativa daquele que habita no mundo. Com isto, Heidegger mostrou que somos ontologicamente seres que existem no mundo. Qual seria o problema, por outro lado, em relação à natureza? Porque separo aqui a natureza daquilo que penso por ser humano? Porque o ser humano é histórico, sendo natural apenas por habitar limitadamente a natureza, por isso a habita. Já a natureza é, em seu mundo ambiente, natural, não necessitando habitá-la. A explicação é rasa, mas, tenho artigos e escrevi uma tese de doutorado sobre isso, então quem tiver interesse será de bom grado compartilhar.

Seguindo, o conceito de identidade é central porque existimos na ruptura do mundo. No antropoceno, significa dar conta de existir enquanto alguém que ou participa da destruição do mundo, ou quem sofre com isso, no mais das vezes as duas coisas. Isso não nos define, mas apresenta o mundo do qual partimos. Conjuntamente a isso, precisamos pensar o conceito de tempo, porque é esse conceito que torna possível ontologicamente algo como uma identidade e algo como mundo. A pergunta “o que somos?”, nesta perspectiva que tomo parte, significa perguntar pelo que somos temporalmente, como existimos temporalmente e como temporalmente somos capazes de dar algum sentido a esse mundo em colapso. Mais ainda: se vivemos um mundo em colapso, como equilibrar a expectativa e a memória? Afinal, também é disso que se trata o tempo.

Vocês podem estar se perguntando – se por ventura alguém ler este texto além de mim – o que diabos isso tem a ver com melancia? Bem, a identidade é como uma melancia, macia, doce, com sementes, rodeada por uma casca amarga intragável que impede qualquer interconexão com o mundo. Assim é a motivação principal deste texto, que é responder a um texto que atmosfera-se em uma melancia-melancólica textura de atemporalidade. O texto em questão é de meu irmão-filósofo, do blog ipseidade pura – que pode ser lido aqui  -, que busca compreender em uma longa jornada os conceitos de narrativa e temporalidade/possibilidade. O texto em questão é excepcional, embora eu discorde de quase tudo.

O principal do texto que estou respondendo – sugiro fortemente que leiam – baseia-se em mostrar uma similaridade entre narrativa e existência. O texto é recheado de belas referências literárias e o objetivo é mostrar como, a partir dessa similaridade entre existência e narrativa, podemos unificar um mínimo de experiência a partir da narrativa e, com isso, conseguirmos chamarmos algo de “eu”. Praticamente não há nada na vida em que mereça ser narrado, então o desafio é grande. Em uma bela passagem, o autor diz:

 Se a existência não fosse narrável, não existiria a historiografia, o romance e, para acompanhar Ricoeur, teríamos uma commpreensão paupérrima de nossas identidades pessoais (e fazendo um puxadinho dessa ideia, a psicanálise seria impossível porque seria impossível recuperar aquilo que Lacan chama de “a história de uma vida vivida como história”). E na existência, há imensas quantidades de tempo nas quais, evidentemente, nada acontece. Nada narrativamente significativo acontece. Nada que mereça relato acontece. Nossas vidas podem se ver vigorosamente absorvidas em massas de tempo absolutamente indignas do registro em histórias. Acho que neste 2020 derradeiro não foram poucas as pessoas que descobriram ou eventualmente confirmaram essa possibilidade existencial dedutível de uma frase mágica de um romancista do século XVIII.

Após isso, o autor diz o seguinte:

Para Ricoeur, só essa compreensão dos narradores dá conta do desafio de um Agostinho, que triplica o presente, transformando memória e expectativa em formas de organização do presente. Ironicamente, o Koselleck cujas ideias Ricoeur tanto admira, pega o tempo agostiniano e, com um microscópio, mostra seu potencial de fractal.

 A construção está muito boa e parte da leitura de Paul Ricouer, hermeneuta francês que via a vida como uma cebola, que é um pouco pior do que uma melancia, se tratada de modo errado. Após isso, o autor cita Koselleck, historiador alemão, sobre as noções de passado, futuro e presente.

A incompreensão que salta aos olhos aí se dá na compreensão da temporalidade. Heidegger já compreendia o tempo a partir de três modos – temporalidade originária, tempo do mundo e tempo vulgar (outra hora escrevo sobre) – e cada um desses modos com presente, passado e futuro. O caso é que todos se dão em unidade, pois o futuro desvela o passado no presente. O futuro – que também possui o sentido de expectativa – significa o chegar a si mesmo, isto é, o tornar a si mesmo enquanto o que se é. O tornar-se a si mesmo somente é possível porque já existimos no mundo, que é compreendido como a condição incontornável de que “já somos” – o passado. O momento dessa compreensão é o presente.

Compreender a narração como a única saída para a resposta temporal da manutenção de si, não leva em conta a compreensão temporal que unifica a possibilidade da nossa existência. Além disso, colocar similaridade entre narração e existência pressupõe tomá-las como duas estruturas análogas que apenas trancendentalmente, ou por acaso, teríamos as duas ao mesmo tempo e, através disso, fizéssemos o papel de narrar aquilo que somos.

Por conseguinte, sem dúvidas o tempo que vivemos – e muitos de nós mais do que outros – em grande parte não merece ser narrado, pois de fato não “acontece” nada. A questão é que vida não é literatura, embora seja texto. A reorganização da identidade pessoal após o colapso pessoal que ocorre na compreensão de si mesmo enquanto um ser finito não é dada pela narração. Se assim fosse, teríamos que tomar a memória como narração. Teria tal poder a memória? A memória pode não ser apenas passiva, pode inclusive ter a instância transcendental como há em Kant, mas ela não é a responsável por fazer o meio campo entre existência e narração. Ou faria?

No entanto, algo há que ser dito: pode haver uma confusão de minha parte sobre as noções de imaginação e memória. Neste sentido, pergunto ao autor de pura ipseidade qual seria o critério da manutenção de si, ou melhor, qual seria o diferencial na abordagem em que ele trata se comparado não apenas com Heidegger, mas até mesmo com os modernos, seja Kant ou até mesmo Hume. A minha pergunta recai na tônica específica da manutenção do si mesmo após a mudança, pois essa é uma questão filosófica por excelência e não resposta alguma em definitivo (e esperamos que nunca haja). Haveria como manter-se autêntico após tomar uma decisão autêntica ou não haveria mudança estrutural no si mesmo após uma decisão? O ser humano não passa de um amálgama de narrações, de uma coleção de contos? Qual o critério para elaborarmos os contos que somos nós mesmos?

André Luiz Ramalho da Silveira

 

Sobre o narrável e o possível — Ipseidade pura

Ano passado, por essa época, eu andava para cima e para baixo com o monstruoso O homem sem qualidades, de Robert Musil. Levei quatro meses pra ler aquela montanha de papel. Em junho desse ano, decidi começar a releitura do Tom Jones, de Henry Fielding. Comecei, parei e retomei nos últimos dias. Antes de qualquer […]

Sobre o narrável e o possível — Ipseidade pura

Ensaios filosóficos ou recortes do fim do mundo – II – O perguntar

 

Ensaios filosóficos ou recortes do fim do mundo – II – O perguntar

O mundo das certezas é a solidificação da confusão potencial. Certo, certo… confuso. Vamos lá. O mundo de certezas amplia a segurança que possuímos na nossa compreensão cotidiana de mundo. Mas a certeza, tal como toda força burocrática, constitui-se como a ampliação da aceitação sobre a ação, da primazia do acatar pelo questionar. A automatização de nossas ações pela ideia de segurança nos coloca em evidência que o esquecimento não é outra coisa senão a construção humana de frágeis significados advindos do medo do perguntar.

Mas, o que dá certeza ao mundo? É possível um mundo sem certezas? Absolutamente não. O problema não é simplesmente sobre haver certezas, mas sim como elas são mantidas em uma sociedade, uma vez que isso concerne mais ao poder político e social do que a construções e movimentos teóricos. O papel da ciência, enquanto autoridade veritativa, torna-se fundamental para manter o mundo razoável frente o abismo do dogma. A funcionalidade disso, no entanto, depende de como o mundo social e político se encontra. Quando uma sociedade adere à plena aceitação de verdades indecifráveis em mundo cuja tsunami informacional é a regra, a certeza torna-se uma crença absoluta que não tem mais pé em qualquer fenômeno.

Quando isso não diz respeito apenas a uma sociedade, mas ao mundo globalmente considerado, o que temos é uma ruptura com o secularismo. Por que a ciência, enquanto autoridade veritativa, não mostra-se capaz de enfrentar as abominações do fascismo cognitivo? Talvez porque, embora fundamental, a ciência trabalhe com a realidade e com as certezas.

Se a pessoa que faz ciência não transcender os fenômenos e não colocar inclusive a si mesmo como prova, não consegue inclusive fazer as perguntas. E de onde surgem as perguntas? Certamente de nós. Mais especificamente da nossa relação com a filosofia. A filosofia não pode se prender às amarras do real. Somente assim o perguntar filosófico consegue indicar os caminhos para além da certeza. E por que isso é importante? Porque certezas podem haver várias. Mesmo em um mundo bestializado e com déficit cognitivo haverá certezas. Em mundo mais equilibrado elas também hão de erguer-se, para o nosso bem. Acontece que em mundo menos decrépito as certezas possuem mais complexidade e funcionam com mais qualidade para servir de critérios razoáveis para o nosso existir.

Somente a pergunta filosófica consegue isso. O que absolutamente não significa, como pensam alguns indigentes iluministas, que somente o filósofo poderia segurar o temível fardo da verdade. Pensar e perguntar são o mesmo. A certeza importa muito menos aí do que a pergunta, uma vez que é a pergunta, sem medo de ser feita, que pode abrir o mundo de tal modo que seu brilho destoe à burrice cristalizada e faça desses cristais não uma aberração burocrática, mas cores e sons para um mundo em sentença de morte.

E qual filosofia? Bem, não essa fetichista que pensa ser secretária de uma suposta ciência. Porque a rigor essa ciência que se acha a portadora das diretrizes do mundo nada mais é do que uma engenharia produtiva que não age cientificamente. E a filosofia não é ciência, nem deve agir cientificamente. A ciência é quem deve servir de freios para os delírios filosóficos, quando a filosofia se propõe a ser doutrina. E como ela faz isso? Mantendo suas condições de verdade dentro do rigor da qual ela mesma é resultado. A ciência, como portadora das certezas do mundo, não pode pensar as coisas em geral. A filosofia, bem, só é filosofia se assim o fizer. A correção do mundo só se dará pelo mundo mesmo. Ou seja, não se dará.

Mas, ainda, já e sempre caberá o perguntar.

 

André Luiz Ramalho da Silveira

Ensaios filosóficos ou recortes do fim do mundo – I

Ensaios filosóficos ou recortes do fim do mundo

I –

O ar rarefeito entremeado entre o fenômeno e aquilo que somos faz sumir o fenômeno e aquilo que somos, a tal ponto de fazer aquilo que somos se equivaler ao ar rarefeito que nada toca, embora permeie tudo. O que seria da compreensão humana sem essa ironia de acharmos que é possível compreender algo? A ilusão transcendental mostra-se como condição para a esperança rota de cada dia. Mas, não a esperança individual, orgulhosa de si ao mover corpo puxando os próprios cabelos no abismo do mundo. Não essa. A esperança que constrói a comunidade, que é tão racional quanto é a patologia.

Somos essa fazer-se a si mesmo sobre o solo majestoso do esquecimento. O esquecimento é a condição para a permanência da existência. Fomos abençoados pelo criador ao não possuirmos controle sobre nossas memórias.

No entanto, talvez não haja criador, nem controle, e talvez isso não seja nem mesmo uma benção, uma vez que o momento disruptivo é calcado na memória que, tal como um algoz, tortura a subjetividade a tal ponto dela se render e aceitar a objetividade do mundo. A criação do mundo não está na razão. A destruição, bem, talvez esta esteja.

Mas, não, não é faço aqui um movimento irracionalista. A razão talvez seja mesmo o elemento do mal. Por outro lado, somente a partir dela é que se torna possível vencer a condição de amaldiçoado. Pode mesmo ser uma ilusão a vontade de compreender o mundo, mas, ao menos essa ilusão, não somos nós os criadores. Temos que lidar com isso e a nossa responsabilidade é aprender a compreender. O que pode ser mesmo que aprender a sofrer.

Como se tivéssemos escolha.

Somos ar rarefeito num mundo maldito. Mas, somos algo, ainda. Pensar a esperança a partir de projetos talvez não seja a melhor perspectiva. Esperança é o horizonte que nutre nossa ilusão transcendental. Essa ilusão que é condição de possibilidade para aguentarmos o mundo, de modo a esquecer do próprio mundo na maior parte do tempo.

O que seria um recorte do fim do mundo também pode ser um recorte da formação de mundo, pois para o pensamento que se põe á prova, todo mundo já está perto do fim.

André Luiz Ramalho da Silveira

 

O caroço

O caroço

Em uma mão repousava o mito, na outra, com o olhar entremeado pela ficção, mantinha a razão em suspeita distância do delírio. Os significados desfaziam-se a cada talho. A cada talho, uma ruptura; a cada ruptura, um mundo que se abria, porém outro que se esfacelava no real tornando-se presente apenas na memória. Sempre se tem mundo, mas há mundos tão reduzidos que não passam de um resíduo de mundo. Como se chegou a essa situação?

É preciso voltar algumas horas para compreender a clarividência do que essa situação possibilita. Norberto Alteromundo Mesmidão retornava a casa após ir a um supermercado. Era um sábado relativamente quente, portanto a cerveja que comprou constituía-se como a mais autêntica compreensão de si que o mundo testemunhava: nada poderia vencer uma cerveja gelada em um dia quente. Ao menos é o que pensava. Alteromundo possuía uma inteligência excepcional, mas seu último sobrenome o impedia de agir no mundo. Gostaria muito de ser um Mirmidão contra a poderosa frivolidade técnica que assola nossos tempos de século XXI, impondo-se como um filho de Zeus contra a tirania da burrice e contra toda a canalhice espraiada pelo mundo. Gostaria que a revolução interna que elaborava dia a dia alterasse o mundo. Toda decisão que tomava era inspecionada por uma profunda presciência de si mesmo, nunca abandonando a melancolia para sintonizar à compreensão a um mundo delirante. Sabia que as emoções eram reveladoras de caminhos perdidos pela razão, embora a razão fosse a única capaz de dar ao mito o devido lugar de ficção. Mas, não. Seu sobrenome o impedia. Tentava de tudo, mas Alteromundo não alterava o mundo, pois era também Mesmidão.

Norberto, o trabalhador, morava com sua esposa, que não se encontrava no momento em que ele retornava ao lar. Neste dia, ele também comprou algo que ela gostava, embora ele considerasse esse algo como praticamente o Pomo de ouro dos nossos tempos, o veneno em forma de alimento, a viscosidade em forma de ser: a manga. Em relacionamentos há concessões, e o melhor a fazer é não elaborar muito esse tipo de raciocínio para não corromper a si mesmo, pois o resultado é a destruição dos envolvidos e a manutenção do objeto da discórdia. Norberto, então, lavou e repousou a fruta em cima da mesa, com o cuidado de quem manuseia algo radioativo. Após isso, se pôs a fazer o exercício dos deuses: nada – e beber cerveja.

Do sofá observava o mundo. Na totalidade de suas divagações, a mesa. A manga. A mesa, um belo retângulo de madeira, limpa, apenas com uma fruteira repousando sobre ela e, na fruteira, apenas a manga. Aos poucos começou a sentir uma leve preguiça, eventualmente interrompida por alguns brilhos surgidos da mesa. O pomo de ouro, quando olhado diretamente para ele, cessava-se. Sobranceiro como de costume, não se atreveu a ceder ao absurdo. Mas, pelas costas, a traição acontece. Levantou-se para fumar um cigarro na parte externa da casa. Quando quase saía da linha de visão da mesa, foi golpeado duramente por um breve cintilar daquela manga. Aquilo pareceu-lhe demais, um excesso da natureza contra a história de quem, por um erro tipográfico, era Mesmidão e não Mirmidão. Decidiu-se.

Picasso – refeição do homem cego

Colocando um pé à frente do outro, caminhou até a cozinha sem tirar os olhos da manga. Pegou uma faca. Puxou a fruteira, olhou a manga. Seus olhos duvidosos tremiam, seus pés esquentaram e o suor do desespero lhe acometeu. Mas, Alteromundo não poderia resignar-se à tamanha maldade. Resolveu descascar a fruta, aos poucos. Não obstante saber que para operações práticas não era preciso realizar deduções transcendentais, neste momento ele gostaria de ser mais racionalista. Com a fruta descascada, começou a cortá-la em pedaços, com a típica violência comedida dos assassinos sem intenção de matar. Restou o caroço.

O entorno congelou-se e Norberto, o trabalhador, sentiu-se compassivo com o caroço… a partir do mais verdadeiro dos sentimentos, o da solidão. Como aquele caroço, que dava vida à crueldade de tamanha magnitude, poderia ser algo tão distinto daquilo que dele lançou-se à vida? A maldade natural poderia não ser assim tão diferente da maldade histórica. Aos poucos, Alteromundo percebia que todo criador poderia ter como algoz justamente a sombra da criação, que nada mais é do que a sombra de si mesmo projetada sobre qualquer coisa. Neste momento, pôs-se a chorar. Ao buscar corrigir o comportamento inapropriado frente a quem mais sofria, tentando limpar as lágrimas de sua face, o fez com a mão que segurava a faca e quase se cegou. Por sorte, era hábil em esquivas contra golpes do mundo e nada aconteceu. Quando essa quebra temporal ocorreu, voltou a si e percebeu que era apenas ele. Restou o caroço.

Da materialidade do mundo brota a paz que germina o ódio. O ódio de perceber a vacuidade de toda tentativa de autenticidade. Mas, o ódio libertador, que se antepõe à melancolia paralisante. Ao menos o ódio é ativo e, quando compreendido, ódio justo e não ressentimento. Ao compreender isso num instante, como um talho que cinde o mundo entre um antes e um depois, percebeu que precisava investigar até o que julgava ser o fim disso e pôs-se a cortar o caroço.

Lentamente o braço descia, com a mão firme e a faca em punhos, na direção do caroço. Golpeou, de modo firme e intransigente. Mais uma vez. Mais uma. Quando perdeu as contas de quantas vezes, com o caroço já em vias de cisão, percebeu que a totalidade significativa que sustenta o mundo começou a perder importância. Aos poucos fora arrebatado por um vazio que implodia tudo aquilo que sustentava sua identidade, e que nem mais se importava em romper o caroço. Sentiu-se no meio de um caminho que não fazia sentido nem mais voltar para o que era, nem mesmo seguir para um novo… mas, não era questão de escolha, seguir era o único caminho. Mesmo angustiado, como quem talha a própria vida seguia talhando o caroço.

O Sol já insinuava o sono e Norberto seguia talhando. Quando estava prestes a romper o caroço, seu ombro direito tremeu com um leve toque de mãos. Eram figuras etéreas fantasiadas de sentimentos. Memórias nunca desenterradas que determinaram o caráter de Mesmidão e que, agora, surgiam como um cataclismo mnemônico capaz de romper a barreira do real. Apavorado, Mesmidão fez o que fazia de melhor, que era nada. Permaneceu atônito, sentindo a promessa não realizada com os algozes espectrais que outrora foram parte de sua vida. Embora atônito, seguia talhando o caroço.

A escuridão da noite notava-se pela falta de brilho na faca de Norberto. Pensava em arrepender-se do que fez àquelas memórias, mas ficou na dúvida… o que significava arrepender-se? Sentia apenas o cansaço de esfaquear o inominável, na tentativa de domar o mito. Não tinha mais forças, nem expectativas. Mas, as memórias impunham à Alteromundo uma decisão. Arrependimento não é uma proposição enunciativa, pois não basta proferir o arrependimento. Em momentos de calamidade, todos se arrependem. Mas, Alteromundo sabia que, quando voltasse a ser Mesmidão, também voltaria a ser o mesmo de sempre, desconsiderando todo o suposto aprendizado. Não é aprendizado quando não se aprende, assim como não é escolha quando o mundo é reduzido a tal ponto em que a noção de diferença é rompida e, com isso, anulada toda a possibilidade da escolha… ou é sobrevivência ou é dissimulação. A prova da mudança de comportamento acontece quando se volta para a mesma situação normal e burocrática de sempre, pois quem se diz mudado em tempos de crise, nada mais faz do que seguir caminhos estabelecidos pelo caos. Restou o caroço.

Exausto, Norberto não conseguia mais lidar com a impossibilidade de responder aquelas perguntas não verbalizadas. Levantou-se arrastando sua cadeira um pouco para trás, ficando de pé em frente às sombras. Levou a mão à frente e pegou a faca, melada da manga, e talhou as memórias. No desespero e pela noite ter caído como uma atmosfera totalizante em seu apartamento, Norberto Alteromundo Mesmidão tropeçou na ponta de sua cadeira e caiu no chão. Caiu sobre sua faca, de modo que ela entrou na sua perna. Pensou que poderia ser pior, pois ao menos não havia perdido a faca. Tirou a faca de sua perna, levantou-se e rastejou até o sofá. A seiva negra pingava a sua frente. Observando a faca envolta naquela seiva iluminada pela luz negra da noite, percebeu que não havia faca. Restou o caroço.

André Luiz Ramalho da Silveira

Ensaio sobre a memória e o esquecimento

A memória viva é a história das possibilidades. Seria prudente, nesse caso, falar de uma memória morta? É preciso distinguir entre memória viva enquanto uma ação projetiva no mundo, ainda que esta recaia sobre a dimensão existencial do passado mantido no presente, do esquecimento, da memória morta como apenas um entulho cristalizado na dimensão do passado, residindo apenas no passado. O esquecimento, por sua vez, não é memória morta, mas é memória ativa inconsciente assentada sobre o presente e sobre o futuro, ambos compreendidos sem qualquer fundamentação teoria ou prática, ainda que possuam uma lógica interna que o tornam possíveis.

Rememorar o mundo é trazer para o agora aquilo que foi vivido, trazer para a nossa historicidade o legado que nos envolve, para assim o apreendermos. Mundo, como o habitar e como a síntese global daquilo que nos torna finitos, mundo como aquilo ao qual é em função do que somos. Aquele espaço de transcendência para o qual nos projetamos e nos tornamos, tanto individualmente quanto coletivamente, aquilo que somos. Mundo não entendido como apenas a soma de tudo o que é, como uma classificação estrangeira ao que nós somos. Neste sentido, trazer novamente para nós a possibilidade de outrora é recuperar a possibilidade da ação a partir do pensar que apropria e destrói aquilo que um dia foi vigente.

Recuperar a possibilidade que um dia não escolhemos é impossível. Por outro lado, é possível – e necessário para uma compreensão mais autêntica de si mesmo -, colocar os erros para tomar um banho de sol. Não apenas os erros, mas todas as experiências traumáticas e trágicas – que são as únicas que importam, quando o assunto é ruptura e correção. O mesmo ocorre na experiência do luto, uma vez que estruturalmente a memória conserva no presente aquele que partiu, e precisamos conviver de diferentes modos com a falta. A falta não necessariamente de uma pessoa, mas também de um mundo, aquela falta que quando ocorre nós perdemos a nós mesmos, para depois termos que nos reinventar. Se mundo fosse apenas uma coleção de unidades ou conjuntos, essas mesmas perdas poderiam ser simplesmente substituíveis.

A memória viva como o elemento que perfaz a projeção para o futuro é o que tira do ocultamento a sombra do totalitarismo. Somente a partir do desvelamento desse fenômeno é que se torna possível vê-lo em seu esgueirar-se modorrento em cada discurso e comportamento. Como contrapartida a isso, se tem o esquecimento.

Não me refiro ao esquecimento trivial, como a ausência de determinada lembrança. Mas si ao esquecimento que está na base das posições dogmáticas. O esquecimento que impede a dúvida por implodir as possibilidades e manter junto a si apenas uma certeza. O esquecimento, nessa acepção, concerne a imposição de uma nova significação e compreensão de vida e de totalidade dentro do mundo. Isso, por sua vez, significa impor uma nova visão de mundo a partir da falta da memória ativa que salvaguarda o pensamento. Com a destruição do flanco defensivo da memória, o esquecimento contamina como vírus o mundo das opiniões.

O esquecimento como memória ativa, porquanto inconsciente de si e do mundo, consuma-se como o maior perigo para o ser humano, tendo em vista que é a partir desse fato que colapsos podem ser justificados. Justificados, sim, pois a partir da falta de um mínimo fundamento, não segue simplesmente que essas posições não teriam alguma lógica interna. O fato é que posições dogmáticas preservam-se na história humana com justificativas atrozes, mas preservam-se, atingindo toda estrutura de poder possível. O perigo do totalitarismo, dos odores do nazi-fascismo, repousa naquilo que os tornaram possíveis. Sim, sempre a possibilidade. A certeza ancorada em dogmas é a arma fatal dos que se propõem como destruidores de mundo.

O grande problema nesse talvez não diga respeito apenas aos humanos passivos que são engolidos pelo ressentimento, que se tornam os grandes protagonistas de histórias destrutivas. O problema também se ancora a todas as forças que referendam essas atitudes, por vezes mantidas por pessoas mais razoáveis. Essas forças, políticas e intelectuais, por covardia de manter a memória ativa e encarar aquilo mesmo que propunham, abrem mais uma vez o abismo da falta de orientação para qualquer coisa que venha a ser chamada de verdade.

A memória ativa como história das possibilidades é quem possibilita, para aqueles com coragem, a revisitação a si mesmo e a compreensão de que a sombra da besta pode ser a sombra de cada um. Somente a partir do desvelamento da sombra da besta pode o tempo conjurar uma história que nos liberte do terror.

André Luiz Ramalho da Silveira

A forma do mito I

Combate, Miliciano, as forças obscuras do mal vermelho,
Crédulo, Incapaz de pensar luta contra a ignomínia interna de seu pesar.
Símbolo, Talha a narrativa de sua turba como um colosso rimado à relho.
Messias, Onomatofóbico, constrói a civilização como uma ode contra os que apenas sabem cismar.

Soneto da Resistência I

Soneto da resistência I

Resistir é existir na temporalidade do que se quer partir.
Partir como aquilo que se quer destruir,
Ruir como aquilo que se quer destituir.
Destituir como o chão que nos faz assistir.

Assistir como somos consigo mesmos,
Mesmo na luta diária para sobreviver nesse cosmos,
Cosmos contra o caos,
Mesmo que no caos estejam as verdades dos espasmos.

Resistir é construir a si mesmo mediante a ruptura do existir,
Existir é resistir a si mesmo e ao dogma do falso devir,
Devir como aquilo que vem pra destituir a nefasta moral do assistir.

Pensar é se perder no caminho do devir,
Em que resistir é a sobrevivência de quem se sabe como eksistir,
No defender contra o totalitarismo que apaga o pensamento e nos impede de rir.

A era da impotência: soneto da distância

A era da impotência: soneto da distância

A palavra dita, morta é no ato do dizer.
O abismo nunca se esconde, esgueira-se
Pela razão que aniquila o ser.
Isolamento… do grito não deriva-se,

O pedido por sanidade.
Não alcanço mais as paredes. Os limites
Da realidade
Explodiram todas as sortes.

O véu é feito de sangue,
As estrelas, computadorizadas
Pelo controle incontornável das covardias generalizadas.

A tragédia que cada um quer para si,
Como o único bem possível de se ter na era da impotência,
Tornam-nos cada vez mais identidades da distância.

André Luiz Ramalho da Silveira