O tempo e a identidade – Carta resposta à ipseidade pura da melancia e seu texto Sobre o narrável e o possível
A pergunta central do antropoceno – essa nova era geológica que coloca o ser humano como o principal agente de mudanças biogeoquímicas no planeta, isto é, o principal vetor de catástrofes, muitas irreversíveis – pode não ser uma pergunta ética, embora ela seja fundamental. A pergunta central, penso, se dá na pergunta pela identidade. O que significa habitar um mundo cuja destruição é causada pela habitação daqueles que a habitam? E, por habitar, restrinjo aqui apenas nós, humanos, pois a natureza viva e não viva não habita, no sentido ainda a ser explicado aqui.
Se a pergunta central é sobre identidade, como correlativa do habitar, essa pergunta leva a outra igualmente importante, qual seja: como se dá a construção de mundo? A pergunta se insere de modo justificado uma vez que identidade pressupõe habitação no mundo e, mundo, pressupõe tempo. A imparcialidade é a ilusão fraca dos que buscam esquecer a si mesmos em face da cristalização de uma identidade prática arruinada pela burocracia. Neste sentido, não busco imparcialidade alguma. Tomo aqui como ponto de partida a visão ontológico-existencial de Martin Heidegger.
Perguntar por algo significa buscar pelo horizonte de sentido que torna aquela pergunta possível, por isso a pergunta é mais importante do que a resposta. Neste sentido a pergunta pela identidade se coloca central nestes tempos agônicos, afinal, o que significa ser alguém em tempos cuja indigência existencial não encontra parâmetros nem para o real, nem para o possível? O que garante a coerência para alguém dizer “sou eu”? Em tempos em que não apenas a implosão dos critérios de verdade aconteceu – isso já aconteceu décadas atrás com a suposta destruição do sujeito pelo brilhantismo pós-moderno –, mas sim a assunção da não verdade como pós-verdade se tornou a regra do possível, como pensar a existência enquanto algo significativo, condicionante e unificador da experiência humana? Ainda penso que, com Heidegger, temos uma boa resposta. O si mesmo existe sempre na possibilidade da ruptura. Essa possibilidade, dada pela compreensão da nossa própria finitude, torna possível a compreensão daquilo que é mais próprio para nós. Isso ocorre não em termos psíquicos ou materiais, mas em termos relacionais e existenciais, isto é, em termos daquilo que faz ou não sentido e daquilo que torna nossas possibilidades vazias em possibilidades que podem vir a caracterizar a nossa existência. Mas, o que nos mantém enquanto nós mesmos é a nossa permanência nessas possibilidades, ou a não permanência; de todo modo, não as possibilidades em si mesmas, afinal elas somente podem ser pensadas enquanto vinculadas a nós, de outro modo serão meramente devaneios lógicos – e vazios.
Claro, não falei uma parte importante. A compreensão que temos da finitude advém da relação que temos com a possibilidade de nossa morte. Essa possibilidade se espreita a cada pouco. No entanto, ela está mais presente e é mais sutil do que na maioria das vezes se compreende. A possibilidade da morte é a compreensão dos limites, a compreensão de que não há uma possibilidade que exista como fundamento para algo. Nesse caso, não há uma identidade que exista por si mesmo, nem uma identidade que, uma vez alcançada, se mantenha por si mesma. Por conseguinte, não há nenhuma identidade que seja dada divinamente, não há identidade que não seja história, e por isso mesmo toda identidade deve ser compreendida historicamente. Colocando exemplos, não há uma ideia de povo, de raça pura, de povo privilegiado, que resista à compreensão existencial de identidade, pois nestas ideias há o pressuposto de um dado a priori que antecede nossa projeção a essas possibilidades. Neste caso, do ponto de vista formal, projetar-se nessas possibilidades significa o mesmo que projetar-se em outras; no entanto, há de se arcar com as responsabilidades de se projetar em tal ou tal possibilidade.
Neste caso também podemos pensar o problema do habitar. Quem habita, habita um mundo. Não estou pensando aqui no significado específico que Heidegger utiliza para tratar do conceito de habitar, mas sim no sentido mais geral que pressupõe a noção de mundo. Neste caso, quem habita, habita em um mundo e, mundo, não significa nem a totalidade somada dos entes substanciais nem dos entes humanos, mas sim a unidade significativa daquele que habita no mundo. Com isto, Heidegger mostrou que somos ontologicamente seres que existem no mundo. Qual seria o problema, por outro lado, em relação à natureza? Porque separo aqui a natureza daquilo que penso por ser humano? Porque o ser humano é histórico, sendo natural apenas por habitar limitadamente a natureza, por isso a habita. Já a natureza é, em seu mundo ambiente, natural, não necessitando habitá-la. A explicação é rasa, mas, tenho artigos e escrevi uma tese de doutorado sobre isso, então quem tiver interesse será de bom grado compartilhar.
Seguindo, o conceito de identidade é central porque existimos na ruptura do mundo. No antropoceno, significa dar conta de existir enquanto alguém que ou participa da destruição do mundo, ou quem sofre com isso, no mais das vezes as duas coisas. Isso não nos define, mas apresenta o mundo do qual partimos. Conjuntamente a isso, precisamos pensar o conceito de tempo, porque é esse conceito que torna possível ontologicamente algo como uma identidade e algo como mundo. A pergunta “o que somos?”, nesta perspectiva que tomo parte, significa perguntar pelo que somos temporalmente, como existimos temporalmente e como temporalmente somos capazes de dar algum sentido a esse mundo em colapso. Mais ainda: se vivemos um mundo em colapso, como equilibrar a expectativa e a memória? Afinal, também é disso que se trata o tempo.
Vocês podem estar se perguntando – se por ventura alguém ler este texto além de mim – o que diabos isso tem a ver com melancia? Bem, a identidade é como uma melancia, macia, doce, com sementes, rodeada por uma casca amarga intragável que impede qualquer interconexão com o mundo. Assim é a motivação principal deste texto, que é responder a um texto que atmosfera-se em uma melancia-melancólica textura de atemporalidade. O texto em questão é de meu irmão-filósofo, do blog ipseidade pura – que pode ser lido aqui -, que busca compreender em uma longa jornada os conceitos de narrativa e temporalidade/possibilidade. O texto em questão é excepcional, embora eu discorde de quase tudo.
O principal do texto que estou respondendo – sugiro fortemente que leiam – baseia-se em mostrar uma similaridade entre narrativa e existência. O texto é recheado de belas referências literárias e o objetivo é mostrar como, a partir dessa similaridade entre existência e narrativa, podemos unificar um mínimo de experiência a partir da narrativa e, com isso, conseguirmos chamarmos algo de “eu”. Praticamente não há nada na vida em que mereça ser narrado, então o desafio é grande. Em uma bela passagem, o autor diz:
Se a existência não fosse narrável, não existiria a historiografia, o romance e, para acompanhar Ricoeur, teríamos uma commpreensão paupérrima de nossas identidades pessoais (e fazendo um puxadinho dessa ideia, a psicanálise seria impossível porque seria impossível recuperar aquilo que Lacan chama de “a história de uma vida vivida como história”). E na existência, há imensas quantidades de tempo nas quais, evidentemente, nada acontece. Nada narrativamente significativo acontece. Nada que mereça relato acontece. Nossas vidas podem se ver vigorosamente absorvidas em massas de tempo absolutamente indignas do registro em histórias. Acho que neste 2020 derradeiro não foram poucas as pessoas que descobriram ou eventualmente confirmaram essa possibilidade existencial dedutível de uma frase mágica de um romancista do século XVIII.
Após isso, o autor diz o seguinte:
Para Ricoeur, só essa compreensão dos narradores dá conta do desafio de um Agostinho, que triplica o presente, transformando memória e expectativa em formas de organização do presente. Ironicamente, o Koselleck cujas ideias Ricoeur tanto admira, pega o tempo agostiniano e, com um microscópio, mostra seu potencial de fractal.
A construção está muito boa e parte da leitura de Paul Ricouer, hermeneuta francês que via a vida como uma cebola, que é um pouco pior do que uma melancia, se tratada de modo errado. Após isso, o autor cita Koselleck, historiador alemão, sobre as noções de passado, futuro e presente.
A incompreensão que salta aos olhos aí se dá na compreensão da temporalidade. Heidegger já compreendia o tempo a partir de três modos – temporalidade originária, tempo do mundo e tempo vulgar (outra hora escrevo sobre) – e cada um desses modos com presente, passado e futuro. O caso é que todos se dão em unidade, pois o futuro desvela o passado no presente. O futuro – que também possui o sentido de expectativa – significa o chegar a si mesmo, isto é, o tornar a si mesmo enquanto o que se é. O tornar-se a si mesmo somente é possível porque já existimos no mundo, que é compreendido como a condição incontornável de que “já somos” – o passado. O momento dessa compreensão é o presente.
Compreender a narração como a única saída para a resposta temporal da manutenção de si, não leva em conta a compreensão temporal que unifica a possibilidade da nossa existência. Além disso, colocar similaridade entre narração e existência pressupõe tomá-las como duas estruturas análogas que apenas trancendentalmente, ou por acaso, teríamos as duas ao mesmo tempo e, através disso, fizéssemos o papel de narrar aquilo que somos.
Por conseguinte, sem dúvidas o tempo que vivemos – e muitos de nós mais do que outros – em grande parte não merece ser narrado, pois de fato não “acontece” nada. A questão é que vida não é literatura, embora seja texto. A reorganização da identidade pessoal após o colapso pessoal que ocorre na compreensão de si mesmo enquanto um ser finito não é dada pela narração. Se assim fosse, teríamos que tomar a memória como narração. Teria tal poder a memória? A memória pode não ser apenas passiva, pode inclusive ter a instância transcendental como há em Kant, mas ela não é a responsável por fazer o meio campo entre existência e narração. Ou faria?
No entanto, algo há que ser dito: pode haver uma confusão de minha parte sobre as noções de imaginação e memória. Neste sentido, pergunto ao autor de pura ipseidade qual seria o critério da manutenção de si, ou melhor, qual seria o diferencial na abordagem em que ele trata se comparado não apenas com Heidegger, mas até mesmo com os modernos, seja Kant ou até mesmo Hume. A minha pergunta recai na tônica específica da manutenção do si mesmo após a mudança, pois essa é uma questão filosófica por excelência e não resposta alguma em definitivo (e esperamos que nunca haja). Haveria como manter-se autêntico após tomar uma decisão autêntica ou não haveria mudança estrutural no si mesmo após uma decisão? O ser humano não passa de um amálgama de narrações, de uma coleção de contos? Qual o critério para elaborarmos os contos que somos nós mesmos?
André Luiz Ramalho da Silveira