Das paixões: prólogo da alma

Das paixões: prólogo da alma


Um sujeito deslumbrado com a própria vocação é um sujeito sem vocação e prisioneiro da própria paixão. Quem me dera. Por toda essa vida quis, ao menos acho, algo para querer, algo para me vincular, algo para sair de mim e me tornar aquilo de que seria o objeto da paixão. Queria eu poder tornar-me refém das paixões e, assim, justificar meu sofrimento com todo o embasamento que os heróis da ação se deslumbram. Mas, seria isso ação? Quer dizer, óbvio que há movimento, alguma deliberação primitiva e doação de si ao aceitar o embarque em um barco furado para navegar o Estiges. Mas, seria isso ação? Óbvio, digo eu, porque não é possível achar que pessoas de paixão agem irracionalmente. O certo seria pensar que, quem deslumbra-se plenamente consigo mesmo, dotado é de uma plena falta de si somada à burrice que somente a alma humana pode comportar.


Sempre quis querer. Acho que, no mais das vezes, faltava-me o acerto de contas com o destino para aceitar aquilo que queria. Com o passar do tempo, acho que, em verdade, a minha vontade era mesmo a de apenas querer o querer, já que não querer é uma benção não destinada aos humanos. Se, num mundo cujo equilíbrio dá-se pelas bordas arenosas da corrosão permanente, ainda as pessoas conseguem querer objetos que existem, esse mundo ainda é um mundo. Não?
Sei que não tenho paixões. Ou, talvez, falta-me aquela gratidão pelas paixões, típicas de quem consegue transformar a abstração do sofrimento existencial em um sofrimento prático, cabível, paupável, denotável e destrutível. Não me entandam mal, não tenho nada contra quem tem paixões. Eu mesmo gostaria de tê-las. Para mim, resta-se o sublime. Naquele sentido schopenhauriano, de ver o desmoronamento do mundo, mas de longe, em segurança. Meu caminho é mais estoico, mais racional, mais profundo.


Não.


Quer dizer, em parte. O que me cabe é o que me vem. Nesse caso, posso apenas aceitar que meu sofrimento não é pior quanto poderia ser, ou quanto já foi. A racionalidade de que tanto abuso, em verdade é permeada por emoções. Acho que todo meu esforço é tentar domar essas paixões. Bem que faço, afinal, paixões não realizáveis significa sofrimento. E aqui vou a outro ponto.
Se para pôr-se no mundo necessário é colocar-se a si mesmo em jogo, qual seria a temporalidade do magestoso devir da finitude? Qual seria a temporalidade do sofrer humano? Penso que não existe sofrimento que não advenha da expectativa. Simplesmente porque toda a significação que formamos ao compreender mundo parte do fato de estarmos projetados para o futuro. Não apenas projetados, mas jogados, arremessados, triturados em direção a um futuro ameaçador. O pior aspecto desse futuro é justamente o da esperança. Sim, não existe esperança sem sofrimento e, não existe sofrimento sem futuro. A maldilção humana é confundir projeção com querer, pois se estamos indo a algum lugar, nos é impelida a necessidade de querer ir ou não mas, ainda assim, a de querer. E as paixões?


Não sei, o que tenho eu a ver com elas? Você está me falando há um bom tempo que nada tem de paixões, confundindo vocação metafísica com simples bem viver e me pergunta das paixões!? Estou bem com as minhas e nesse sofrimento forçado que você diz não me vejo em lugar algum, afinal, orgulho-me daquilo que sou. Sou aquilo que acredito e naquilo que estou. As vitórias me enchem de uma alegria impiedosa, sempre na espera da próxima.


A perdição no real é o único modo de sobreviver ao jogo do mundo. Não entendo de metafísica, mas entendo do viver. É preciso fazer as pazes com o querer injustificado e aceitar que o brilho do ínfimo é mais contumaz do que o sagrado intangível. Me parece que o que você fala sobre paixão nada tem de paixão, mas de realização pessoal. Confundir isso é confundir o motor da alma com teorias inúteis que servem apenas para massacrar o ego quando se está sozinho. Toda paixão é inútil, porque em si mesma nada significa, mas ela leva a lugares. Não é possível que esteja se esquecendo disso?


Tens razão em um ponto, todas as paixões são inúteis. Elas levam sim a lugares. Mas, não estamos falando aqui de emoções que se esvaziam, mas de paixões, isto é, aquelas em que as pessoas se mantém presas – eventualmente por uma vida. Depois do que você falou, talvez eu já tenha outra posição sobre… de fato, não sei se gostaria mesmo de ter paixões nesse nível. Talvez a minha atração pelo nada salva-me de estar fadado apaixonadamente por algo inútil e não realizável, sendo que posso manter-me tranquilo sabendo que não realizarei nada, ainda que querendo um querer. No fim das contas, o mundo ainda é um mundo.

André Luiz Ramalho da Silveira

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