Solidão

Manifesto contra a ditadura da felicidade II

Sem repensar o passado, não há futuro que se desdobre livre da mácula do fanatismo.
Sem ver o reflexo da razão e escutar os ecos abstratos da tortura e mortificação,
Não há a possibilidade de transcender o abjeto moralismo,
Que permeia a estúpida crença na felicidade desnuda de qualquer pressuposição.

Tal como expôs Andrei Tarkovski, o grande poeta cinematográfico,
A flexibilidade e a fraqueza são qualidades da vivacidade do ser,
Ao passo que a dureza e a força são atributos da morte, conjugadas com a supremacia da ontologia do “físico”.
Liberdade e verdade estão além da ditadura implacável do “você pode ser”.

“Anestesie-me, instituição pútrida.
Roubem meu espírito e firam minha liberdade.
Conservo em mim todos os defeitos ignorados por qualquer santidade.

A solidão nos dá a mão para moldar o tempo na repulsa dessa vida sofrida.
Mas não se enganem neófitos juvenis e anarquistas, não é apenas com o próprio sangue que se faz a liberdade.
A beleza da infelicidade está na autonomia única de ser alheio a qualquer tipo de santidade”.

André Luiz Ramalho da Silveira

Pintura de alguém

Você pinta as sombras
Com as vagas sobras
De todas as suas fracassadas obras
Pois não há como sumir apenas fechando as pálpebras.

O vento bate, mas não parece haver algo
Para apará-lo.
Não existe mundo, não mais, só um reles estrago.
Subsiste apenas a memória, com o dever de escravizá-lo.

Não existe sobra sem sombra.
Mas sobra a sombra dessa relação, como refém
D’um sonho em que se discerne algum ninguém dessa penumbra.

Suas sombras pintadas florescem como ideias
E as paredes como prisões que acalentam a miséria dos que não dormem
Como os que existem em pares que seguem o jogo das facetas marcadas e estragadas.

André Luiz Ramalho da Silveira

Respire

Com a lanterna, à procura das pegadas que nos trouxeram até onde estamos…
No retrospecto dos passos com a esperança de um reconhecimento fugaz.
Sem a lembrança da face dos amores, resta-nos apenas aquilo que pressentimos…
Com a memória engasgada do próprio destino inatingivelmente sagaz.

Mas não há ponto de origem pelo qual pudéssemos apreender o que nos determina…
Tampouco um ponto de chegada, cujo confisco nos tornaria donos da estrada.
Existimos como um meio termo nunca apreensível por completo, uma fragilidade que mina
Toda substância que seja além de alguma possível socialização cristalizada.

E articulamos nosso cotidiano de modo a abafar qualquer pergunta
Sobre o que nos motiva a continuar… não há resposta.
Há existência, simples e vazia. Há esquecimento, desde que mundo é mundo.

Irmão, fazemos o que temos de fazer. Sem ficção não há como suportar.
Autômatos não ouvem, não pensam com a memória, não se importam com o próprio ar.
Mas, isso sempre foi assim. Está tudo certo. Uma hora, há de o ar faltar.

André Luiz Ramalho da Silveira

A sombra dos dias

Se os dias fossem sós, como assim muitos os representam em suas concepções
A quietude estóica seria um fim alcançado por simples sabedoria.
E a mudança não seria ilusão transcendental, mas erupções
Na inércia a que se prostram os infelizes glutões da aporia.

O movimento da mudança obedece a um princípio peculiar,
Pois ele apenas revela o contexto não manifesto de algo para esse algo mesmo,
De modo que o resíduo entre um dia e outro nos eleva à comoção de morar
Em nossos espaços vazios como sendo esses o único traço de constância de nosso esmo.

Se os dias fossem sós eles já seriam como eu, o que me tranqüilizaria
Na medida em que não haveria angústia temporal e o abismo seria teórico.
Mas os dias são juntos e grandes… o que os permite ser eternos em sua letargia.

E as pessoas pensam que mudam para assim satisfazer seus desejos lascivos
Numa ideação puritana. E ainda pensam que mudança é o mesmo que causalidade.
Ninguém muda e a desonestidade consigo mesmo é o trunfo dos esquivos.

Ressentimento III – Nada de ressentimento.

Depuração e satisfação, pintadas na máscara cotidiana,
Configurando a sublimação existencial de quase morte,
Existencialmente mediana.
Face cortada, pinturas de guerra, ninguém escapa à sorte.

Cão fodido, dissociação fundida, preconceito ungido.
Verdade inexpressável, sujeira abominável, existência insuportável;
À alteridade; solidão é a benção dos que vivem a espreita do próprio latido.
Lados servem apenas para serem quebrados, destruídos por qualquer gesto amável.

Elevar-se sobre a própria condição destemida, enterrado no próprio corpo,
Claustrofobia emergente em uma existência que aparece só como retração em cadência,
À alteridade; confiança necessita de boa-fé, exasperada aparência.

Angustiado pela própria hipocrisia, procurando a benção no próprio despeito;
Eles dizem para continuar, eles dizem sobre a importância de se ter importância.
Vomito em cada substantivo adjetivado nessa minha condição de advérbio sem leito.

Ressentimento II – O trunfo da miséria

Não irei precisar… não irei cuidar e nem querer…
Simplesmente quero ir pra casa e cuidar de mim.
Não me deixe perecer tão belamente sob seu intumescer.
Serei essa calhorda dissociação tão costumeiramente adequada ao meu fim.

Eu preciso dessa vergonha, de saber que você sente que sou miserável;
Eu preciso da minha miséria, porque já desisto do amor próprio,
Quando se funda esse em algo de mim além. Quase morrer é como estar estável,
No caos desse maniqueísmo que gera a ordem desse opróbrio.

Preciso de seu amor, preciso de minha infelicidade, preciso que todos morram.
Preciso do meu desprezo a tudo, pra mostrar que tudo é mentira
E que eu sou a maior desonra para mim e para os que ainda findam.

Não espero ir a lugar algum, não espero que você acredite na relevância da minha dor,
Tão virtual quanto sazonal; espero esperar algo, mas me rebaixo a mim antes disso.
No fim de tudo voltamos a mais um começo, onde nada mudou e tudo não passou de um hipócrita ardor.

Ressentimento I – Sorriso Cismado

E o amargo instancia-se no papel amassado,
Imbricado nas memórias que rompem sem licitação.
Não se pode esperar consolo para algo já esquecido,
A não ser que o esquecimento seja ausência de rememoração.

Amor e razão são intimidades frias de algo que não conseguimos tocar,
Mas, a esta, dizemos usar para, aquele, expressar.
E assim aquela ruptura existencial permanece encoberta pelo próprio ar,
Num suicídio que, só quem é tomado por ele, pode confessar.

E o amargo vira questão de orgulho a quem brinda
A si mesmo pela crença de si mesmo, como um pretexto para ferir algum outro;
E assim ilumina-se de sentido aquele ato falho que em si mesmo finda.

E quieta segue a noite, naquela pueril falta de foco que se resume a
Certeza da própria solidão, confundindo-se com aquela risada doída
Dos que se desarmam para conseguir olhar a própria alma cismada.

Além da distância

Ou considerações poético-teóricas sobre o ser

I – A metafísica
Para além da distância da qual ressoam os ecos de predicados distintos,
Cuja distinção e diferença tornam-se passíveis de constatação,
Tão aquém de si mesmo quanto além do próprio distanciar,
Uma individualidade cuja plena ausência torna possível
A cindibilidade do próprio eu em seu terreno cognoscível,
Cuja alteridade só é possível a partir de um si, cujo fixar
É a renúncia de um próprio posfácio, cuja própria libertação
É a história escrita através do eu cindido, além da distância dos ventos.

II – O resíduo
O dissintônico da distância apenas ressalta o amor como resíduo,
Cuja dissipabilidade não é possível nem mesmo no adejar do sabor
Incognoscível do gozar, cujo fenômeno prescinde ao prático.
Não na elevação ao teórico, mas sim ao repouso no aquém do existir.
Esse resíduo que prescreve a posição prévia de um prostrar-se assíduo.
Cuja proveniência é a proscrição da sanidade de qualquer labor.
E esse é o projeto vazio de uma existência num irromper sísmico.
Cujo abalo é o próprio banimento entediado de qualquer prosseguir.

III – O coração
Não há espelhos para uma beleza que é capaz de se olhar.
Não há refúgio digno para um vulto cansado de sozinho o próprio fado arrastar.
Não há insanidade que pode abater a memória que não ousa sonhar.
Não há solicitude que dê conta do a priori si dos que se põem a morrer.
Não há começo para quem não crê no findar.
Não há crença para quem consegue viver na dimensão do vazio arfar.
Não há tempo mais originário do que o tempo que a cada vez se ousa cunhar.
Não há falta de amor num coração que sangra por não conseguir se por a esquecer.

Estação das Brumas: revisitado

E me surpreendi com os cacos de um espelho quebrado,
Quando todos eles me olharam como inquisidores,
E eu apenas fechei os olhos, tentando encontrar em mim algo que não fosse fado,
Mas apenas novamente encontro-me em uma mônada, disseminado nos bastidores.

Ela sabe, todos sabem, eu sei. Mas àquele esquecimento que se esquece nos faz lembrar,
Por vezes, que a morte de Deus não é apenas uma metáfora,
E quando a mim perguntei sobre o que fazer, não estava em condições de encontrar ar.
Disseminado em bastidores e ainda preso, dentro de uma ânfora.

Implodindo, mas nunca o suficiente pra fazer barulho.
Apenas na efetividade de um ainda ser, como um estar circunspecto que sempre cai.
Difícil é lidar com verdades referentes ao próprio entulho.

E aquela tão querida ausência sempre se manifesta como um tornar presente
Aquilo que a memória acalenta, mas que não aquiesce em sua vertente.
Em uma peculiar solidão, resta apenas um despedir-se de si mesmo, dormente.

Um anjo caído

Um anjo caído

Silêncio gêmeo como o resíduo dos que tiveram as asas queimadas,
Gêmeo do grito de desespero que fora dissimulado em um sorriso normativo.
Ainda ouvem a voz que clama pelo derradeiro silêncio das alvoradas,
Esses que nem excêntricos conseguem ser, pois desprezam o vôo do coletivo.

O abismo figura-se como morada do ser, numa nostalgia sempre suspensa,
Atraindo para baixo àqueles que voam com asas espirituais;
Em uma imaginação que adorna o quase-viver, o limbo torna-se o que dele se pensa.
E voa-se com a leveza de um seixo, nesses estanques virtuais.

Ela quis explodir, seu corpo queimando como pétalas se congelando,
Mas ela queimou… as asas do seu amado, para se livrar da ficção,
Pois se acha na ímpar autenticidade dos que julgam espanando.

E o amor se derreteu com as asas do anjo, depois que este se congelou.
Agora a história é apenas o ideal do amor contada sob as vestes da tragédia,
Mas apenas história, apenas para acalentar esse que nunca amou.