Resíduo

Abstinência

Fecho os olhos e lhe vejo, todo o tempo em silêncio;
Em um cintilar existencial, sua formosura me enclausura;
Sei que ao descerrar os olhos, restar-me-á apenas um frágil solstício.
E quando a reflexão adoece o coração, alguma hipótese pode ser a mais concreta estrutura.

E apenas alçamos alguma ação em andamento, pra sentir no peito,
Aquilo que é comum de se sentir, quando a indiferença ascende à falta de pleito.
E a solidão assume-se como a eterna companhia, que jamais abandonará o leito.
E talvez o mais terrível seja continuar a respirar, sabendo que o fracasso é a resina de qualquer feito.

E quando se congela num instante aquela eternidade desvinculada de tradição,
A reflexão articula a destruição de algum poder prático, que esfacela a introdução
Do que na oração é a graça dos que assumem o esquecimento como força do coração.

Não fecho mais os olhos assim, pois até onde ainda reino você já se configura como a minha própria ausência,
Minha própria falência de possibilidade, minha carência que perfaz uma promessa de sua felicidade,
Não fecho mais meus olhos, não vou mais acordar como conseqüência de minha própria abstinência.

Rascunhos de rodapé

Aquela inocência tão desprovida de malícia
Despontar-se-á no êxodo vil como pura audácia,
Na falácia existencial por simbolizar uma tenebrosa carícia;
Uma audácia que há de permear com escravidão os servos da inépcia.

E num embarafustar de preceder a si mesmo, o espírito obnubila-se,
Em mais uma atestação solipsista, rumo a nada de concreto…
Ela não quis saber da fumaça, ela apenas deleita-se,
Em mais um orgasmo… na autarquia autêntica de todo esqueleto.

E agora que o sol está retornando, rompendo como uma metáfora rompe o discurso iluminista,
Não há simplesmente como culpar a atmosfera por aqueles sábios acreditarem na salvação hedonista,
Ou por nunca ter havido a superação do esquecimento de que no próprio algo já há aquele nada…

Miséria existencial soa agressivo… mas os céticos hão de concordar que,
A cada nascer de um novo dia, cuja pressuposição é o convencimento de ter que permanecer na dissociação do continuar,
Hão de concordar que não é preciso de crenças para que esse ‘ter’ não implique em crença em pós-vida…

O roubo e o arroubo.

E vamos roubar uns raios desse sol, vamos roubar um ao outro,
E vamos brincar de odiar deus, vamos odiar um ao outro,
E vamos ser o nosso erro, o erro que perpetua sempre como outro,
E vamos fugir juntos, para no final voltarmos a ser sem qualquer outro.

(E no lar, o ressentimento assume a força real da intransigência.)
Quero estar contigo nessa distância que nos separa,
Prefiro ter a possibilidade de lhe ver, assegurando minha ontologia,
Do que lhe ter como um fato, deliciando-me cada vez mais com a paz amiúde rara.

Se pudesse seria você, já que sou quase eu.
(Não, não sou mais que eu; isso me seria uma fraqueza muito grande.)
Sou apenas quase eu, por vezes ausente de eu, mas ainda quase eu.

E vamos roubar mais um sol, enquanto nesse nosso badalar transcendo à liberdade,
Enquanto no lar de meu fardo deixo-me apenas ser o que quer ser,
Enquanto torno-me o fatalista sempre disposto à piegas piedade.